Coluna do Percival: A Venezuela existe e é logo ali

No Brasil, a violência política se faz visível em dois níveis de radicalização. Num, há a perda da noção de limites; o discurso se exaspera, os poderes e seus membros se retaliam verbalmente, xingamentos agitam as redes sociais, a verdade apanha e a razão é posta à prova. Noutro, tem-se algo mais perigoso. Refiro-me à violência que nasce da ideologia, que não ocorre em assomos de indignação, nem se manifesta naqueles momentos em que o sangue ferve e as estribeiras são perdidas. Trata-se de algo fora dos parâmetros pelos quais se orientam pessoas normais.

 

Ao entender isso começa-se a compreender a razão pela qual, sem quê nem porquê, certos grupos passam a incendiar ônibus, a dar “voadoras” nas vitrinas e a disparar rojões contra a autoridade policial. Mauro Iasi citando Brecht, Guilherme Boulos e João Pedro Stédile com seus exércitos, falam por eles.

 

Em 1968, o general vienamita Vo Nguyen Giap, em artigo publicado em “El hombre y el arma”, escreveu (tradução de Igor Dias):  “… os revisionistas contemporâneos e os oportunistas de direita do movimento comunista e do movimento operário seguem vociferando sobre ‘paz’ e ‘humanitarismo’; não se atrevem a mencionar a palavra ‘violência’. Para estes, a violência é um tabu. Temem esta assim como a sanguessuga teme o cal. O fato é que negam a teoria marxista-leninista sobre o papel da violência na história”.  Mais adiante, lecionará o general: “Os comunistas expõem o papel histórico que cumpre a violência não porque sejam ‘maníacos’ por esta, mas sim porque é uma lei que rege o desenvolvimento social da humanidade. Não poderá triunfar nenhuma revolução e nenhum desenvolvimento da sociedade humana sem entender tal lei.”

 

Para Marx a violência é a parteira de toda velha sociedade que leva em seu seio outra nova. Assim, ela acompanha a ação política de tantas referências da esquerda brasileira, começando, entre outros, pelos nossos patrícios Prestes, Marighela, Lamarca; e vai importando seus bandidos – Fidel Castro, Che Guevara, Tiro Fijo e por aí afora. Se há acusação que não se pode fazer a qualquer desses senhores é a de prezarem a democracia, seus valores e suas regras. Assim também se explicam 100 milhões de mortos com vistas ao tal “desenvolvimento social da humanidade”. Fala-me de teus amores e te direi quem és.

 

Para pôr freio nesses desequilibrados e em seus desequilíbrios, a democracia se afirma, aos povos, no horizonte das possibilidades. “Mas não se faz democracia sem democratas”, disse alguém, com muita razão. A democracia é um sistema e uma filosofia. Uma boa democracia exige que ambos sejam bons e andem juntos. O sistema é definido pelas regras do jogo político, ou seja, pelo conjunto de normas que legitimam a representação popular, regem eleições, determinam atribuições aos poderes, e definem o modo segundo o qual as leis são elaboradas, aprovadas e aplicadas. A filosofia é marcada por um conjunto de princípios e valores elevados, honestamente buscados e  socialmente ratificados.

 

Sem a filosofia, o sistema pode dar origem a toda sorte de abusos, entre eles a ditadura da maioria. Sem o sistema, a filosofia pode descambar para a  anarquia, ou para a ditadura da minoria, posto que faltarão os instrumentos de legitimação conforme a vontade social. Defender insistentemente o constitucionalismo e promover os princípios e valores que inspiram o regime democrático é a melhor proteção contra as perversões que se expressam pela violência. Não chegamos lá, mas tudo pode piorar. A Venezuela existe e é logo ali. Cuidado, pois.

 

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.