Juiz Sul-Chapadense Fábio Esteves é destaque na mídia da capital federal
Começa amanhã em Brasília algo inédito no mundo: uma reunião de magistrados que vão discutir as relações entre a condição racial e o trabalho que exercem. O 1º Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros vai até sexta-feira no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), com uma pauta densa.
Um dos coordenadores do encontro é o juiz Fábio Francisco Esteves, 37 anos, presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (Amagis). Ele está há 10 anos na profissão e atua no Núcleo Bandeirante. Nascido no Mato Grosso do Sul, chegou a Brasília como bancário em 2004.
Para Esteves, o que o encontro deve buscar não é simplesmente mudar a vida dos juízes. Ele quer transformar a própria Justiça, para que se torne algo mais próximo da sociedade. É uma busca que exige maior foco no combate à corrupção. Isso permitirá, explica, que mais recursos sejam destinados pelo Estado à educação, o maior instrumento transformador — a trajetória dele é prova disso.
Nesse esforço, Esteves considera necessários instrumentos muitas vezes vistos como heterodoxos, incluindo prisões de suspeitos de corrupção antes de julgamentos. “Estamos lidando com pessoas que têm a capacidade de fazer uma lei processual penal para conduzir a própria investigação a que estão submetidas”
Mesmo com uma abordagem que não se pretende sectária para o encontro, organizá-lo não foi tarefa fácil. “Um colega disse que eu era muito inocente quando falamos em criar esse evento. Eu não imaginava que no dia seguinte já levaria tantas bordoadas. Mas, na profissão, foi a mesma coisa. Na inocência, sempre acreditei que ser juiz iria me ajudar a construir uma série de sonhos.”
A seguir, a entrevista que Esteves concedeu ao Correio.
Por que discutir a presença dos negros na magistratura?
É importante porque, em 2005, a AMB (Associação de Magistrados Brasileiros) fez uma pesquisa indicando que apenas 0,9% dos juízes eram pretos. Dez anos depois, foi feita uma nova, que apontou 1,4%. Ou seja, em uma década, a participação de negros na magistratura só aumentou 0,6 ponto percentual. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2015, também realizou uma pesquisa nacional que confirmou esse dado. Quando se consideram os pardos, aumenta para 13%. Já temos 12 anos de cotas nas universidades. São necessários cinco anos de faculdade de direito, mais três anos de práticas jurídicas para se tornar juiz. Então, já poderia ter começado a haver algum sinal de mudança. Outra coisa também que aparece são as cotas para juízes. Em 2015, o CNJ editou uma resolução que prevê um percentual de cotas para negros no concurso da magistratura. A AMB também tem preocupação com isso. Um colega juiz que também é negro deu a ideia de criar esse evento. Isso já vinha me incomodando. Sou juiz criminal há dez anos e o meu réu é negro. Será que a sociedade percebe uma magistratura que também é negra? Hoje, no TJDFT, na ativa, são seis negros, em um universo de quase 400 juízes. No dia que nós anunciamos o evento, tivemos reações de apoio e de rejeição ao evento.
As pessoas entendem essa iniciativa como algo preconceituoso?
Sim. Eu falei que a intenção é ter uma magistratura ainda mais unida. Tem gente que passou no concurso e acha que ficou branco. Quando uma colega negra passou no concurso, falaram para ela que juízes deveriam ter o cabelo liso.
Qual o motivo da baixa quantidade de negros na magistratura?
São diversos motivos que começam no nascimento. As cotas não representam apenas um programa de acesso social. Nós temos um preconceito enraizado. O preto é diferente e ao mesmo tempo não é. É diferente para não merecer acesso. Mas, quando se fala em diferenciar para ter acesso, ele é igual. Com as cotas, houve uma crítica geral, sendo que já tinha uma lei para o serviço público. Estamos chamando estudantes negros para esse debate. Eles serão os futuros juízes. Mostramos como é o acesso deles na magistratura.
A justiça tem cor?
Sim. Se a Justiça não tivesse cor, religião, não tivesse ideologia, não tivesse pluralidade, nós estaríamos com sérios problemas, porque temos uma sociedade com 204 milhões de brasileiros. Temos cinco, seis ou sete brasis dentro de um mesmo território, de gente que fala diferente em diversas partes do país. Se fôssemos uma única Justiça, acredito que teríamos problemas seriíssimos de responder.
A Justiça deveria ser neutra?
Neutralidade não se confunde com imparcialidade. O juiz não deve ser parcial em momento algum. Agora, quanto mais neutralidade tivermos, mais afastados estaremos dos problemas pontuais, críticos e sensíveis da sociedade. A imparcialidade é fundamental. A neutralidade afasta, distancia. Vamos discutir se é importante ter uma estrutura que também se reconheça negra. Hoje, temos associações de juízes espíritas, grupos internos de mulheres e magistrados que apoiam determinados tipos de trabalhos judiciais.
Qual a porcentagem de negros na magistratura que o senhor gostaria de ver em dez anos?
Eu espero que a gente chegue a pelo menos 5%, embora seja um número ousado.
O que mais é preciso ser feito além da discussão?
Os tribunais devem chamar essa temática para dentro de suas estruturas. Nós convidamos a ministra Cármen Lúcia para o encontro. Estamos com uma série de pautas, como a de questão de gênero. Depois as universidades precisam trabalhar isso também. Ela já tem a política de cotas. Mas, qual é o trabalho que se faz para esse negro dentro do mundo jurídico? Qual é a orientação que essas instituições dão? Tem essa questão também da universidade construir a vocação. O embranquecimento da Justiça é silencioso. Não pretendemos focar apenas nisso. Temos que focar no juiz deficiente também. Nas mulheres que não conseguem alcançar cargos na administração das empresas. Nós teremos uma juíza que é ex-faxineira e estará no evento.
O senhor sofre preconceito?
Semana passada eu estava com um amigo, em uma festa, na Asa Sul. Meu amigo contou para um conhecido que eu era juiz. Ai o rapaz disse: não estou falando do negro, estou falando do branco. Eu moro no Sudoeste. Outro dia abri a porta para uma senhora entrar e ela perguntou se eu estava de plantão na portaria. Não que eu não possa ser porteiro. Mas a pergunta mostra que ela liga essa atividade somente a pessoas negras. No tribunal, a primeira vez que eu fui julgado pelas pessoas foi bem na minha primeira audiência. Meu irmão, que veio para a posse, estava do lado de fora. O advogado de um réu chegou, olhou, voltou e comentou: “Estamos ferrados. Quem vai julgar é um neguinho.” Meu irmão disse: “É, ele é meu irmão”. O advogado abandonou a audiência. Foi embora, deixou o cliente dele lá. Outro dia uma amiga psicóloga me pediu para fazer um trabalho com juízes. Eu peguei o carro e fui para Planaltina com ela, no fórum da cidade. Quando eu entrei no prédio, o segurança veio e me disse: o senhor deixa a magistrada, pega o carro e espera lá fora.
A discriminação racial pesa mais do que a discriminação de gênero no Judiciário?
Eu não diria que o peso é maior ou menor. Mas a discussão de gênero já está em debate nos tribunais. Está na agenda da sociedade. No caso da racial, as pessoas nem discutem. Hoje, falar de questão racial é associado até mesmo à ideologia política de esquerda. E não é isso. É uma luta de todos e para todos.
O senhor tem alguma avaliação sobre homofobia na magistratura?
Se a questão racial já é complicada, essa é ainda mais silenciosa. Ainda precisamos caminhar muito para ter coragem e ousadia para colocar isso em debate. É algo que está aí, com que a gente convive, mas ignora. A Constituição faz uma opção por direitos fundamentais, que prega uma reconstrução da sociedade. E o Judiciário tem o dever de cumprir isso. Mas, internamente, ainda existe uma timidez para discutir esses assuntos. O Judiciário poderia protagonizar um debate social que enriqueça a sociedade. Hoje, temos uma conflituosidade enorme no país. São 102 milhões de processos, a maior cultura de conflitos do mundo. Para acabar com essa cultura, temos que adotar outros tipos de prática. No Núcleo Bandeirante, recebendo 180 meninos das escolas públicas para ter aulas de direito e cidadania, explicamos direitos desde o nascimento até a morte, como direitos da criança, da juventude e da velhice.
O que o motiva mais para essa tarefa?
Às vezes as pessoas falam que esse trabalho seria uma forma de promoção pessoal. Mas não é. Eu já estou aqui. Isso não muda nada na minha carreira, que já está consolidada. Eu só quero que meus filhos tenham uma sociedade melhor. Recebi até mesmo ataques pessoais de colegas que disseram que eu não os representava. São com ações como o encontro que conseguimos mobilizar a sociedade com essas questões. Não basta apenas a atividade nos tribunais. Nós fazemos muitas coisas pela Justiça. Mas temos que fazer mais ainda.
O senhor acha que o fim do preconceito passa pelas cotas?
Passa fundamentalmente pela educação. Quando a gente orienta as escolas do Núcleo Bandeirante, do Riacho Fundo e da Candangolância para encaminharem os alunos para o projeto que temos nessas regiões, a gente diz: “Queremos o aluno de baixa renda, que tenha bom desempenho, porque nós ainda estamos preparando esse aluno para ser um multiplicador. Principalmente, traga pretos e pardos. E aparecem muito poucos. Nas bolsas de preparatório para juiz há o mesmo problema. Eu perguntei uma vez para uma pessoa: “Fulano, você soube da bolsa?” . “Soube, mas isso era para mim?
Ele achava que não era negro ou não se sentia preparado?
É tudo junto.
Vocês já tiveram de recusar alguém para as bolsas porque não era negro?
O nosso critério é o fenótipo. O edital para as bolsas traz uma ressalva: a pessoa é aceita se a ascendência for pelo genótipo preto, mas somente de pai e mãe. Tenho um aluno branco que veio fazer a inscrição e me disse: “O meu pai e a minhã mãe são pretos”. Nesse caso, vamos entender a trajetória daquela pessoa. Ela é até mais discriminada.
Vocês acham que é razoável a distinção entre brancos, pardos e pretos?
Ela é útil. Conheço muitas pessoas que se dizem pardas. Esse pardo acabou descaracterizando muito a nossa identificação, a quantificação. Para mim, pardo é uma forma de você dizer: “Eu não vou me assumir como preto”. Meu pai, que era um homem preto mesmo, na certidão de nascimento dele está escrito que ele era pardo. Um amigo comentou hoje comigo que achou forte a chamada de uma reportagem comigo, que falava “um juiz negro”. Ele achou ofensivo. Ou seja, o preto se tornou ofensivo. Sou negro. Tenho zero de ascendência branca. Meu pai e minha mãe são pretos. Meus irmãos, minha família são todos pretos e se casaram com negros.
Aos 15 anos o senhor decidiu que queria ser juiz. Mas quem foi sua referência? O que o motivou a dizer “eu posso chegar lá”?
Minha família não tinha ninguém formado. Não teve ninguém que tivesse terminado o ensino fundamental. Meu pai era analfabeto. Minha mãe cursou até a quarta série. Então, não tive essa referência familiar em termos de educação. Agora, uma referência, um patrimônio moral de superação vem do meu pai, que, mesmo analfabeto, administrava uma fazenda. E era um sujeito que tinha um valor na educação, que não conheço ninguém que tenha. E a responsabilidade de pai. Nós morávamos em uma fazenda e a cidade mais próxima ficava a 250km. Quando eu cheguei à idade escolar, o meu pai moveu o mundo para que o prefeito instalasse uma escolinha lá na fazenda. E ficava a 23 km de distância da minha casa. Nunca faltei a um dia de aula. Quando terminei a quarta série, e eu ia para a quinta, meu pai pediu as contas de um emprego de 10 anos e fomos para a cidade. O meu pai saiu do trabalho sem direito nenhum, já que a fazenda não recolhia nada. Fomos morar em um barraco na cidade para eu ir para a escola. Alguém me disse: “Sem querer ser egoísta, penso que nossos filhos são a nossa continuidade em outras pessoas”. Com o tempo, fui tendo essa percepção. Realmente, eu sou a continuidade daquela criatura que não tinha limite. Meu pai era assim e, ao mesmo tempo, um cara inocente. E disse para minha mãe: “Vamos embora daqui porque meus filhos vão estudar”. Acho que quando decidi ser juiz fui um cara muito inocente.
Como as propostas do senhor ajudariam o Judiciário?
Se a sociedade tem condições de dialogar com a magistratura, tem um salto de amadurecimento extraordinário. Isto vem da administração: o líder você não obedece, respeita. A sociedade nos obedece. Eu não quero isso. Quero ser respeitado. Essa é a magistratura do futuro. A magistratura do gabinete, da sentença, a meu ver, vai perder espaço. Se você dialoga, se você fortalece, aí você não tem egos. E é disto que nós precisamos: desenvolver práticas para poder trazer a comunidade para discutir, para dialogar e ela resolver os seus problemas. Ela vai ter condições de resolver seus próprios problemas.
O juiz tem duas férias de 30 dias durante o ano mais o recesso. Isso está certo?
Se justifica, sim. Mas temos outras categorias que também merecem esse regime. É o caso de todo o trabalhador brasileiro que tenha de lidar com conflitos que envolvem a vida, o deferimento de uma UTI às duas horas da madrugada. Aqui no DF é assim: tem gente morrendo na rede pública, indo para o hospital. Hoje, temos um trabalho que estamos fazendo com relação à proteção da infância e juventude 24 horas por dia. Há juízes envolvidos com questões da criança e do adolescente em conflito com a lei. Esse juiz não é um servidor que cuida daquilo como se fosse um material comum. Eu trabalho com o crime, e dentro do crime, tem um recorte com relação ao crime de abuso sexual infantil. Na minha vara, eu julgo 10 casos por mês, em uma região minúscula. Pessoalmente falando, quando eu chego ao fim mês, do ano, tudo isso é complicado para a minha saúde mental.
Mas para o médico, o enfermeiro e o policial,o trabalho também não é penoso?
Com certeza. O médico, o enfermeiro e o policial e uma série de outras pessoas. Não é somente o juiz que deve ter esse direito, de jeito nenhum. Estou dizendo uma coisa que acontece comigo, que acontece com os meus colegas magistrados no dia a dia. Lidar com o conflito humano é uma questão dramática demais. Em algumas áreas, a gente se questiona se vai voltar para trabalhar no dia seguinte. Se é isso mesmo que está preparado para encarar.
Como tem funcionado a sua atuação na comunidade?
Lá no Núcleo Bandeirante, eu sou convidado para reunião de pais, na escola. É importantíssimo estar presente lá na reunião de pais. Foi a realização de um sonho ser titularizado no Núcleo Bandeirante, que tem essa cara de cidade pequena. Ando muito pelas ruas. Sou professor lá também, no projeto e nas escolas, fazendo palestras. Eu me sento com o pai do menino e digo: “Olha, seu filho tem tudo para poder alcançar uma série de coisas . Eu não quero ele depois lá no fórum (para ser julgado)”. Eu convido todos para reuniões no fórum. Faço isso, primeiro, porque quero que a comunidade se aproxime mais do sistema de Justiça . Segundo, porque é pedagógico para os pais também, que dizem:”Pôxa, não quero meu filho aqui, não”.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios já teve algum presidente negro?
Não, não teve. O desembargador Sandoval Gomes de Oliveira é o único na segunda instância. Teve o presidente do TRE (Tribunal Regional Eleitoral), o desembargador Romão Cícero Oliveira, que fez um livro. E um dos livros era sobre direito eleitoral do negro. O desembargador queria um capítulo sobre a Justiça Eleitoral, sobre a participação política do negro.
O senhor entrou por cotas no concurso público?
Não. O meu concurso não tinha isso. O programa de cotas para a Justiça é recentíssimo.
Mesmo assim o senhor acha que é necessário ter cota?
Sim, muito. Alguém me marcou na postagem dizendo que eu não precisei de cota para me tornar juiz. Eu disse para nunca mais fazer isso, pois não sou exemplo. Eu sou a exceção da exceção. Eu participei agora de uma seleção para doutorado na UnB. E não fiz pela cota, por já ser mestre, por ser juiz e por conhecer o método de seleção. Mas aí o pessoal veio falar comigo sobre a importância de afirmação ao usar as cotas. Eu concordei.
A cota não pode criar uma brecha para que as pessoas olhem para quem não entrou por cota e pense que só poderia estar ali por cota?
Uma juíza escreveu um texto sobre essa questão de meritocracia. Ela, como juíza branca, falou que sua trajetória foi muito fácil: era filha de funcionários públicos, estudou nos melhores cursinhos. Mas tem gente que não tem esse acesso que ela teve. E não vai ter essa chance do mérito.
Qual pode ser o efeito sem a cota na seleção?
Em São Paulo teve uma pesquisa muito séria, que avaliou duas mulheres. Uma branca e uma negra. Com todo o perfil muito similar. Elas foram estudadas a partir do acesso ao emprego. E se calculou que existe uma diferença de ao menos 20% para o acesso das duas.
Mas isso não cria uma pecha para quem é selecionado por cotas?
Onde eu dou aula, os estudantes cotistas têm desempenho maior que os não cotistas. O mesmo ocorre na UFRJ e na UnB, que também já possuem dados sobre isso. As pessoas têm que entender que as cotas não são um favor, pois as pessoas não tem o acesso. Ninguém fala que não vai dar o direito por alguém por conta da cor da pele. Mas elas o fazem, sem perceber. Inconscientemente, a sociedade nega esse acesso. E nega por conta da cor da pele.
Quais seus planos a longo prazo?
Eu quero estar em um lugar que trate as pessoas com igualdade. Eu quero influenciar pessoas para aquilo que eu acredito em matéria de igualdade.
O senhor pensa em seguir carreira política?
Não é meu perfil. Fora do Judiciário, eu descarto completamente. Eu sou vocacionado como juiz. Eu não sei se eu saberia fazer outra coisa. As transformações que eu vou procurar influenciar será no papel de juiz.
Há pessoas que veem exagero no fortalecimento da imagem do juiz na luta contra a corrupção, citam Sérgio Moro. O que o senhor acha?
Eu penso que não podemos ter juízes heróis. Quando se fortalece demais um personagem, um juiz, se corre maior risco de que a sociedade de frustre. Não se pode colocar nas mãos do juiz Sérgio Moro o fim da corrupção. A Justiça é uma pequena parte desse processo, muito importante, mas pequena. Precisa mudar nossa cultura. Precisamos deixar claro que o Moro tem esse viés simbólico para nos ajudar a compreender esse fenômeno que o Brasil atravessa, de remover velhas práticas. Mas o Judiciário em si não pode ser personificado. As pessoas me perguntam o por que não faço o que o Moro faz. Não é assim. Ele tem outra competência.
Juízes podem ser criticados uns pelos outros?
Uma vez um colega me disse que não podemos criticar decisões dos colegas. Eu disse que até concordaria com isso no dia em que toda a magistratura fizer um trabalho em cadeia, em uma teia. A magistratura precisa de unidade. Não deve ser apenas a visão de um e de outros. No dia que isso mudar, apoio as decisões dos colegas.
Para o grupo de magistrados negros, ou de estudantes negros de direito, faz bem ter a imagem do ex-ministro Joaquim Barbosa?
Faz. Mas são coisas diferentes. Uma coisa é a trajetória do Joaquim Barbosa. Outra coisa é eu pegar um magistrado e usar a imagem dele para definir a Justiça. O Moro me ensina como magistrado, como colega de trabalho. Ele tem coragem.
Uma vez o Joaquim Barbosa se irritou com um repórter que abordou o fato de ele ser negro. O senhor acha que esse tipo de questionamento o incomodava?
Quando o Joaquim foi nomeado para o STF (Supremo Tribunal Federal), ele já tinha um grande passado. O que o incomodava era o fato de as pessoas só o viam por ser negro. Incomoda esse discurso de que, com um imenso e vasto currículo, a cor da pele fale mais alto. As credenciais dele para o STF até ultrapassavam o necessário. Tem gente lá com bem menos qualificações do que ele. Destacar que tem um negro na corte ou em qualquer cargo é importante. Mas não se pode esquecer de ressaltar a competência para se ocupar o cargo. O negro tem que estar o tempo todo justificando as coisas. Um criminoso é preso por estupro, homicídio, e é negro. Logo se tem que destacar que não é por ser negro que ele fez aquilo. Os brancos não precisam dar essa justificativa.
Nas suas decisões como juiz, alguém já lhe acusou de inocentar um réu ou condenar por ser negro?
Nas minhas decisões, não. Mas tenho uma colega juíza que atuou em um caso em que o réu era um skinhead, que pediu a suspeição dela por ser negra. Isso pra mim não tem fundamento algum. Nas minhas decisões, o que eu levo em conta é o processo. Na minha decisão o que avalio é o contexto, inclusive a exclusão racial.
E como isso poderia influenciar na sua decisão?
Às vezes, a pessoa chega ao delegado de polítia e fala: lá no Park Way estão ocorrendo muitos furtos, há muita criminalidade. E acusa uma pessoa negra. O que eu vou avaliar é se tem provas para aquilo. Se não é apenas uma representação ou algo simbólico. Será que concretamente existe um perigo ou é um grupo de pessoas que se sente acuado por conta do perfil de outra pessoa? Todos nós pensamos que preto se associa com portaria, com empregada doméstica, com segurança. E muita gente pensa que preto se associa com bandido. Mas preto também pode ser juiz, pode ser professor. Assim como nem todo preto é bandido. Será que esse preconceito também não está na cabeça do juiz? Será que o judiciário encarcera o mesmo número de pessoas entre todos os perfis? Outro dia eu estava na casa de um amigo. Os avós dele dizem que me adoram. Um dia me disseram: você é crioulo, mas é tão gente boa.
Sempre se falou que a Justiça só prende negro e pobre. É verdade?
A Justiça faz isso porque hoje, na esfera criminal, nosso público é preto e pobre. Isso ocorre por conta da exclusão social. Outro dia, na Candangolândia, uma moça desempregada furtou uma calça e uma blusa. Foi presa em flagrante. Quando eu fui julgar, fiquei pensando nos outros casos. A prisão dela foi convertida em preventiva. Ou seja, ela ficou presa. Eu pensei: vamos pegar todos os casos como esse, inclusive os que eu julguei, e saber se estão presos.Tem um sujeito, playboy, que matou dois rapazes, por questões de droga, e está solto. Eu não posso trabalhar com essa contradição. É provável que alguma coisa esteja errada.
Qual foi a decisão do senhor neste caso? O senhor manteve a acusada de furto presa?
Não, eu a soltei.
O senhor acha que a Justiça condena demais?
Eu acho que a Justiça condena mal, não demais. Hoje, no DF, temos uma grande quantidade de promotorias criminais. Dentre as criminais, as que combatem o desvio de dinheiro público são infinitamente menores. Se trabalha mais para prender quem rouba o toca-fitas do carro do que quem rouba milhões. Se eu invertesse isso, eu teria dinheiro para investir em educação. E todos os crimes de menor potencial se reduziriam. Será que o nosso processo penal, que se usa para julgar quem furta uma bicicleta, serve para essas pessoas, que criam nossas leis? É um sujeito que cria as leis que vai julgar ele mesmo. Será que não chegou a hora de a gente dizer que algo tem que mudar? Não seria o caso de se criar uma forma de combater criminalmente a corrupção?
Não é isso o que faz o Barbosa e o Moro pessoas com grande aprovação na sociedade?
Exatamente.
Então o senhor é a favor da severidade com que a Justiça tem agido nos casos de corrupção?
Muitas pessoas criticam, dizendo que são métodos heterodoxos, com violação de direitos fundamentais. Eu não defendo nenhum tipo de violação de direitos. Mas não sou o CNJ. Será que o nosso processo penal lá, que a gente usa para o réu que furtou uma bicicleta, funciona para esse sujeito que está declaradamente não alinhado com a norma, com o sistema? Ao meu ver, não funciona. Não se deve tratar as pessoas iguais de forma igual, e os desiguais de forma desigual? Talvez o processo penal precise realmente ser melhor tratado, fortalecido, para essas pessoas. Estamos lidando com pessoas que têm a capacidade de ir lá e fazer uma lei processual penal para conduzir a investigação a que estão submetidas. É um sujeito que precisa ser olhado de modo diferente. A gente não combate organização criminal diferentemente do sujeito que age sozinho? Precisamos criar uma forma especial de combater criminalmente a corrupção.
* Ana Dubeux , Paulo Silva Pinto , Marlene Gomes – Especial para o Correio Braziliense.