Tomou posse nessa terça-feira 13, na presidência da Associação dos Magistrados do Distrito Federal e Territórios (Amagis-DF), para o biênio 2016-2018. O Juiz Fábio Francisco Esteves.
Dr. Fábio Esteves é natural da cidade de Paranaíba, com dois anos de idade mudou para Chapadão do Sul. Ele vem de uma família humilde, teve seus estudos em escolas pública e, é hoje um orgulho para a Chapadão do Sul.
Conheça a História do Juiz Federal a história do juiz que passou a infância na roça, chegou aonde queria e aprendeu a enfrentar o racismo
Meu pai era capataz de fazenda e minha mãe cuidava da casa, dos três filhos pequenos e cozinhava para 50 peões. Sozinha. Nasci em Paranaíba, Mato Grosso do Sul. Quando eu tinha 2 anos, minha família se mudou para Chapadão do Sul, onde me criei. Meu pai descende de uma família que veio da África no tempo da escravidão. Fui criado em fazenda, até quase os 12 anos. Sou o mais velho dos quatro irmãos. Minha educação foi rural, multisseriada, várias classes em uma única sala. Na infância toda fui privado de acesso a tevê, a energia elétrica, a informação. Às vezes a gente passava três, quatro meses sem ir à cidade. Não tenho lembrança de haver sofrido preconceito na infância. Na escola, só eu e meus irmãos éramos negros. Meu pai era uma pessoa muito querida, muito bem-vista, talvez por isso não tenhamos sentido o preconceito. Depois, no meio urbano, e mais velho, em Brasília especialmente, tive a experiência do preconceito de cor.
Meu pai era analfabeto, mas fez tudo para que eu e meus três irmãos estudássemos. Ele dizia: ‘Vou dar minha vida, mas meus filhos vão estudar’. Tenho comigo a figura desse homem indestrutível. Quando eu tinha 11 anos, ele morreu. Minha mãe foi trabalhar como empregada doméstica. Na adolescência, eu era um aluno muito bom, um expoente. As pessoas se aproximavam muito de mim por causa disso e acabavam ignorando o preconceito. Se existia, era simbólico, não era declarado. Vim sentir essa nitidez aqui em Brasília.
Aos 15 anos, decidi que queria ser juiz. Passei no vestibular de uma universidade pública em Paranaíba, a cidade onde nasci e para onde voltei. A partir desse momento começou a ser muito forte a questão da negritude. Havia dois negros na minha turma de faculdade. Na universidade inteira, não passavam de cinco.
Aí aconteceu um episódio que me marcou. Eu era um aluno questionador, gostava de provocar reflexões em sala de aula. Havia dois anos eu tinha aula com um professor que reiteradamente protelava a resposta a perguntas que eu fazia. Naquele dia, me zanguei um pouco. ‘Olha, professor, tenho uma quantidade enorme de assuntos que o senhor protelou para a gente tratar depois. Quando eles serão tratados?’. Ele ficou furioso comigo, furioso, furioso. Então ele disse para todo mundo em sala de aula: ‘Ainda vou descobrir quem cortou o rabo do macaco’.
Eu era muito imaturo na época, tinha 19 anos. Minha primeira reação foi a de tentar compreender a expressão. Porque eu sempre fui muito sereno, muito tranquilo. Não reagi, não respondi, não quis desviar o foco da questão. Meus amigos ficaram irritados, nervosos com o professor e eu disse a eles que iria tomar providências posteriormente e acabei não fazendo nada. Eu não tinha maturidade para compreender o que significava aquilo.
Foi um aprendizado muito grande para a construção da minha identidade. Embora nunca tenha rejeitado a identidade negra, a intensidade dela apareceu ali. A partir daquele momento, passei a buscar minhas raízes. Foi quando passei a perceber que eu era minoria nos espaços em que estava. Meus valores passaram a ser outros, A forma de me posicionar passou a ser outra e a forma de construir sonhos também.
Terminei a universidade e vim para Brasília. Cheguei no final de 2003. Havia passado no concurso do Banco do Brasil. Na minha agência eu era o único negro num universo de 35 funcionários. Ao mesmo tempo, estudava para o concurso da magistratura. Na minha turma, eram 75 alunos ou mais e eu era o único negro.
Quantos magistrados negros temos nesse tribunal? Não passam de cinco, eu conheço três e isso num universo de 300 magistrados. Sou professor da UDF. São 158 professores, são poucos os negros. Em cada turma minha tem 70 alunos, dos quais dois ou três são negros.
“É um neguinho que vai julgar”
Certa vez eu estava num júri ouvindo uma testemunha. Ela era mãe da vítima e sogra do acusado. Perguntei a ela o que havia ocorrido. E ela me respondeu: ‘Eu bem que disse: ‘Filha, não se envolva com preto que dá nisso”. Todo mundo no tribunal ficou meio pasmo, mas ela não percebeu o que havia dito. Fiz uma pausa, foi inevitável. Parei um pouco para digerir aquilo e continuei o interrogatório. Ao final, todos vieram me perguntar por que eu não havia tomado nenhuma atitude. Não cabia. Mas, nesse momento, me chamou uma certa atenção a forma de eu me pôr na sociedade. Sou magistrado, sou professor, sou acadêmico [o juiz faz mestrado em direito], estou inserido em diversos meios. E tenho que responder a essa questão da cor.
Às vezes procuro relevar muito as coisas. Logo que fui empossado, fui julgar um crime de racismo. Meu irmão veio assistir à audiência. Era uma injúria que tinha conteúdo racista. Numa briga entre duas senhoras vizinhas, uma chamou a outra de negra. A sala estava muito cheia e meu irmão ficou do lado de fora, com um amigo, me esperando. O advogado da acusada entrou na sala, pegou o processo, olhou, perguntou a que horas ia começar a audiência, e saiu da sala. Fechou a porta, virou-se para o assistente dele e disse: ‘Estamos ferrados, é um neguinho que vai julgar’. O amigo do meu irmão não se conteve: ‘Este aqui é o irmão dele’. O advogado simplesmente sumiu, não apareceu na audiência e não apareceu mais no processo.
Quem sente é que sabe que o preconceito existe. Não gosto de defesa de guetos, mas gosto que minha identidade seja respeitada como qualquer outra. Não estou dizendo que o negro deve ser respeitado porque é coitadinho. Não estou dizendo que deve ser respeitado porque é marginalizado socialmente. Estou dizendo que negros têm condições de alcançar determinados postos sociais porque são pessoas humanas. Não é a cor que vai fazê-lo pior ou melhor do que ninguém.
“Foi um pacto muito forte”
Minha mãe sofreu muito com a minha escolha. Ela tinha medo de me ver sofrer. Era um tormento para ela. Com 17 anos, eu disse: ‘Mãe, vou embora de casa. Vou fazer cursinho para fazer direito.’ Ela quase teve um ataque. Quando meu pai faleceu, acabei assumindo muito a casa. Mas eu tinha meu sonho. Me transferi pra Paranaíba. Quando vim pra Brasília, ela percebeu que não havia mais possibilidade de que eu voltasse atrás. E aí ela ficou doente. Eu trabalhava de dia, estudava à noite e me preparava para o concurso nos finais de semana.
Não tive problema emocional, mas a minha mãe teve todos. Desenvolveu uma gastrite nervosa, que virou úlcera, que perfurou o estômago, deu hemorragia, depois descobri u que estava com anemia crônica, teve que tirar o útero porque estava com mioma, tudo de cunho emocional. Ela tinha um humor pesado, sofria muito, não saía de casa. Ela sabia que minhas condições em Brasília eram hostis, que eu tinha que passar semanas sem comer carne. Isso para ela era muito complicado.
No finalzinho de 2006 fui aprovado no concurso [para magistrado]. Todo o sofrimento e as doenças de minha mãe acabaram. Mas a vida dela continua exatamente a mesma. Ela é servidora pública, é lavadeira numa creche. De jeito nenhum quer parar de trabalhar. Não quer sair do lugar de onde está. Só sai para viajar comigo. Parece que o melhor remédio para a saúde dela foi minha aprovação no concurso.
Foi um pacto muito forte o que a gente fez, mesmo sem saber. Ela ia suportar minha distância para que eu pudesse, em dois anos e meio, tempo recorde, ser aprovado no concurso e num lugar que nem de longe eu sonhava, ser juiz na capital federal.