‘Omissão sistêmica’: 30 atendimentos médicos e denúncias; veja cronologia que terminou na morte de menina de 2 anos
Uma semana após a morte da menina Sophia Jesus Ocampo, de 2 anos, os sentimentos presentes nos processos de luto do pai biológico Jean Carlos Ocampo e seu companheiro, Igor de Andrade, são de tristeza profunda e indignação com as autoridades que receberam diversos pedidos de socorro que poderiam ter evitado a morte da filha. Veja a linha do tempo das ocorrências mais abaixo.
A menina chegou morta à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro Coronel Antonino, no dia 26 de janeiro. Stephanie de Jesus Da Silva e Christian Campoçano Leitheim, mãe e padrasto da menina, estão presos.
Sophia chegou a ser atendida em postos de saúde de Campo Grande por 30 vezes antes de morrer. Para a advogada Janice Andrade, houve “omissão sistêmica” por parte das autoridades que sabiam do caso.
O g1 teve acesso a dois boletins de ocorrência registrados pelo pai da menina por maus-tratos, inúmeras denúncias no Conselho Tutelar e a tentativa de conseguir a guarda nos últimos 13 meses, mas que nunca tiveram retorno.
“Teve uma omissão sistêmica, isso aconteceu desde o primeiro atendimento nos postos de saúde, na delegacia quando o pai foi registrar os boletins de ocorrência por maus-tratos e junto ao Conselho Tutelar, que também não cumpriu sua função social”.
Segundo as investigações, a criança apresentava sinais de estupro e espancamento. Andrade afirma que os agentes públicos não estavam preparados para resolver o caso da pequena Sophia. “Como que uma criança chega com uma perna quebrada, diversos hematomas e ninguém faz nada? Isso não é normal”.
Confira a seguir uma linha do tempo das denúncias feitas à polícia, Conselho Tutelar e pedidos de socorro feitos na Justiça nos últimos 13 meses.
- 31 de dezembro de 2021
Em dezembro de 2021, após buscarem Sophia para passar a virada do ano juntos, Jean, que é técnico de enfermagem, identificou hematomas espalhados pelo corpo da menina, inclusive no rosto. Na época, acionaram o Conselho Tutelar.
“Busquei minha filha para passar o ano novo e vimos uma pancada e diversos hematomas tanto no rosto como no corpo. Questionei a genitora e ela respondeu que foi uma queda de carinho, mas aquilo não era tombo de queda, era uma pancada. Eu mostrei para outros enfermeiros que trabalhavam comigo e eles concordaram, então fomos atrás de justiça”, lembra Jean.
Ainda em dezembro de 2021, foi requisitado um exame de corpo de delito para Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA).
O parceiro de Jean ainda relatou que as visitas à menina só foram possíveis após o pai da criança entrar na Justiça e, assim mesmo, só via a filha do jeito que a mãe determinava. Para ele, houve omissão por parte das autoridades na condução do caso.
“Se sonhamos que estava nesse grau e proporção a gente tinha pegado a neném e não devolvia, mas a gente ficou muito sem informação. A gente ia até a delegacia e não informam nada pra gente, não davam atenção pelo fato de ser um pai e seu companheiro”, lamentou.
- 31 de janeiro de 2022
No dia 31 de janeiro de 2022, o pai de Sophia registrou o primeiro boletim de ocorrência por maus-tratos qualificado, quando o crime é praticado contra pessoa menor de 14 anos.
De acordo com o registro policial, ao qual o g1 teve acesso, o pai identificou alguns hematomas espalhados pelo corpo da filha. Ao ser questionada, a mãe justificou que a menina tinha se machucado após brincar com um gato.
O boletim ainda diz que a casa em que a menina vivia com a mãe e o padrasto era “insalubre e cheia de lixo”.
“Toda vez que eu ia levar ela de volta para casa, a Sophia se desesperava. Entrávamos no carro e ela começava a chorar e isso me deixava com o coração na mão. Quando eu buscava e via os roxos na perna e nos braços, eu questionava aquele monstro [a mãe materna] que dizia que era um menino maior que morava com eles”.
- 8 de fevereiro de 2022
Em fevereiro, Jean acionou mais uma vez o Conselho Tutelar para denunciar as agressões sofridas por Sophia. O pai procurou a unidade para denunciar maus-tratos praticados que teria sido cometidos contra a filha de 1 ano e sete meses, na época.
O documento, emitido pelo Conselho, diz que a avó materna procurou o pai para relatar que a mãe estava: “maltratando a criança constantemente, batendo, deixando mal alimentada e em local insalubre“. O documento é assinado por uma conselheira de Campo Grande.
Questionado se tinha relação com o padrasto materno, que está preso por suspeita de ter matado a menina, Jean disse que não. “Vi esse homem uma vez, precisei buscar minha filha que estava com ele, enquanto a Stephanie trabalhava. Todas as vezes que eu ia buscar ela em casa, esse homem não estava, ele não tinha contato comigo”.
O g1 foi até a casa onde a menina Sophia morava com a mãe e o padrasto, na região norte de Campo Grande, e viu a residência em situação de abandono, com roupas penduradas no varal, brinquedos jogados no chão e fezes de animais espalhadas pela varanda.
Na casa onde a criança morava, bitucas e caixas de cigarro foram encontradas espalhadas na varanda da casa. Garrafas de bebidas alcoólicas também foram vistas.
- 5 de maio de 2022
Três meses depois da denúncia no Conselho Tutelar, o pai de Sophia procurou mais uma vez a unidade. Isso porque vizinhos de Stephanie registraram uma ocorrência de maus-tratos a um animal de estimação, e ele levou a informação ao Conselho da região norte.
De acordo com o registro, o pai da menina apresentou vídeos e fotos de hematomas e do estado da casa em que a criança morava.
O documento diz que foi solicitado uma nova visita à casa em que a menina morava para ser encaminhada às medidas necessárias. Na data, Jean foi orientado a entrar com o pedido de guarda através da Defensoria Pública.
O companheiro de Jean relatou que mostraram provas dos maus-tratos em diversas ocasiões ao Conselho – como fotos dos hematomas e áudios, mas nada era feito.
- 10 de maio de 2022
Em 10 de maio de 2022, o pai de Sophia procurou mais uma vez o Conselho Tutelar para emitir documentos solicitados pela Defensoria Pública para entrar com o pedido de guarda da menina. Nesse dia, o pai foi informados por uma conselheira que a carteira de vacinação de Sophia estava atrasada.
“Eu mostrava fotos dos hematomas, mostrava a neném, e nada era feito. Eles deveriam agilizar o processo e informações. Sempre nos pediam documentos, documentos e documentos. O tempo que a gente enrolava atrás de documentos, era o tempo que poderia ter feito algo, uma medida protetiva para tirar ela de imediato daquela casa”.
A Secretaria Municipal de Saúde (Sesau) apura se houve falhas nos atendimentos prestados à menina. O processo administrativo vai ouvir servidores públicos da Sesau para colher informações. Tudo que for coletado durante a investigação será enviado à Justiça e Polícia Civil, segundo o secretário Sandro Benites.
- 20 de outubro de 2022
Nove meses após o primeiro boletim de ocorrência ser registrado por maus-tratos, o pai de Sophia foi intimado para prestar esclarecimentos em uma audiência com a Justiça.
- 22 de outubro de 2022
Jean e Stephanie foram intimados pela Justiça pela denúncia de maus-tratos feita pelo pai em janeiro de 2022. Na ocasião, apenas o pai compareceu e o caso foi arquivado.
“Só eu fui na audiência e a juíza me perguntou se a Sophia tinha hematomas daquela forma de dezembro de 2021, e a única coisa que disse foi que daquela forma, com aquele hematoma não, mas a minha filha sempre chegou na minha casa com arranhões e roxo diferentes”.
Após a audiência, o caso foi arquivado. “Eu disse que a minha filha tinha marcas de agressão sim, mas como não era o mesmo grau que fez a gente registrar o boletim de ocorrência, decidiram arquivar o caso”, relatou o pai.
Em nota, o Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) informou que a avó e a mãe da criança foram ouvidas pela Polícia Civil e relataram não ter havido maus-tratos com a criança, e que não havia interesse no procedimento criminal.
O MPMS informou ainda que, “em razão da atipicidade material do fato, o Ministério Público, requereu o arquivamento do procedimento”. Veja a nota na íntegra abaixo
- 22 de novembro de 2022
O segundo boletim foi registrado na DEPCA no dia 22 de novembro, quando o pai foi buscar a filha e encontrou a menina com a perna quebrada e novos hematomas pelo corpo.
O registro policial diz que a criança estava com hematomas nas costas e com a perna esquerda quebrada com gesso. A mãe da menina relatou que a fratura teria acontecido devido a uma queda no banheiro.
“Hoje a gente percebe que a Sophia dava sinal, a mãe só me procurava quando queria dinheiro. E ela nem disfarçava que fazia o uso da pensão da neném para contas pessoais. As vezes que ela dava entrada no hospital eu não sabia, só fiquei sabendo uma vez que a mãe falou que ela estava com uma infecção no estômago”.
Sobre o registro, a Delegacia-Geral da Polícia Civil emitiu uma nota informando que o genitor não imputou os maus tratos à genitora ou ao padrasto, mas que suspeitava de maus tratos.
Segundo a polícia, foi expedido exame de corpo de delito para a criança ir ao IMOL para realização de exame de corpo de delito e a mãe foi intimada a prestar esclarecimento. Em depoimento, a mulher relatou que que Sophia caiu com a perna virada, foi levada para realizar raio x e alegou que o pai registrou boletim de ocorrência pois queria a guarda da criança.
Ainda sgundo a nota da polícia, o pai não levou a criança para realização de exame de corpo de delito, razão pela qual o termo circunstanciado de ocorrência foi autuado e encaminhado ao Poder Judiciário em 20/12/2022, sem laudo de exame de corpo de delito.
- 15 de janeiro de 2023
O último encontro entre Sophia e o pai, Jean, e seu companheiro, Igor, aconteceu no dia 15 de janeiro, onze dias antes da morte da menina.
“Ela passou o natal conosco e devolvemos para passar o ano novo com a mãe. Depois, no dia 8 de janeiro, peguei a minha filha novamente e ela ficou com a gente até o dia 15. Essa foi a última vez que vimos a nossa filha em vida”.
- 26 de janeiro de 2023
De acordo com a avó materna, Sophia passou mal e vomitou, desde o início da manhã do dia 26 de janeiro, dia em que morreu.
No dia, Sophia estava sendo cuidada pela mãe, e chegou a ter uma melhora no início da tarde. No entanto, a criança voltou a piorar por volta das 17h. Ela foi levada pela própria mãe à UPA do bairro Coronel Antonino, mas chegou no local sem vida.
Segundo informações da polícia, a criança já estava morta havia cerca de quatro horas quando deu entrada na unidade. Ainda segundo a avó, a neta tinha hematoma nas costas, na boca, teve sangramento pelo nariz e apresentava abdômen inchado, indicando uma possível hemorragia interna.
O Instituto de Medicina Legal (IML) emitiu uma declaração de óbito em que aponta que a causa da morte de Sophia de Jesus Ocampo, de 2 anos, foi por um trauma na coluna cervical, que evoluiu para o acúmulo de sangue entre o pulmão e a parede torácica.
Mãe e padrasto presos
A mãe, Stephanie de Jesus Dada Silva, e o padrasto, Christian Campoçano Leitheim, foram presos em flagrante no dia 26 de janeiro pelo crime de homicídio qualificado por motivo fútil.
Já no dia 28, o juiz Carlos Alberto Garcete, da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande, converteu, durante audiência de custódia, a prisão dos suspeitos de temporária em preventiva.
O padrasto foi levado para a Penitenciária Estadual Masculina de Regime Fechado da Gameleira. A mãe foi transferida para um presídio no interior do estado, por motivos de segurança.
O g1 procurou o MPMS para saber o andamento do processo. Em nota, o Ministério Público Estadual informou que um dos processos foi arquivado após a avó, a mãe e o pai da criança serem ouvidos. A outra ocorrência não chegou ao órgão.
Confira a nota na íntegra:
A Assessoria de Comunicação do MPMS, em contato com o Promotor de Justiça que atua no Juizado Especial, foi informada que referente ao caso da criança Sophie de Jesus Ocampo, foi registrado, em janeiro de 2022, um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) por maus tratos, na 10ª Vara do Juizado Especial Central. Na época, foram ouvidas pela Polícia Civil: a avó e a mãe da criança que relataram não ter havido maus-tratos com a criança e que não havia interesse no procedimento criminal. Por sua vez, o comunicante da ocorrência, o pai, compareceu na audiência preliminar designada e informou perante a autoridade policial que os maus tratos não voltaram a repetir.
Em razão da atipicidade material do fato o Ministério Público, requereu o arquivamento do feito. Por consequência, a Juíza Eliane de Freitas Vicente acolheu a manifestação do representante do Ministério Público e determinou o arquivamento do procedimento, ressalvada a possibilidade de desarquivamento, nos termos do que dispõe o artigo 18 do CPP.
Em dezembro de 2022, um novo boletim de ocorrência foi registrado junto à 11ª Vara do Juizado Especial e não foi distribuído ao MPMS.
Fonte: Rafaela Moreira, g1 MS