Medida Provisória que seria para renovar frota de caminhões acaba com a fiscalização de jornada dos caminhoneiros e vai contribuir para o aumento das mortes nas rodovias. A MP foi aprovada dia 2/8 na Câmara Federal e enviada imediatamente para o Senado; no dia seguinte (3/8), foi aprovada naquela Casa e enviada para sanção do presidente Bolsonaro. Pressa típica de várias situações não republicanas do Congresso e governos brasileiros
COMO TUDO COMEÇOU E SURGIU O “JABUTI” NA MP
O presidente da República mandou para o Congresso em abril de 2022 a Medida Provisória Provisória n° 1112, teoricamente com o objetivo de instituir o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País (Renovar), basicamente renovação da frota.
Foram apresentadas quase 100 alterações e sugestões no projeto. Várias delas sem nenhuma relação com o tema. Algumas podem ser chamadas de “jabutis”, termo usado para caracterizar artigos mal intencionados colocados em lugar indevido.
Para nós do Estradas.com.br, focados sempre na segurança viária, o que mais chamou a atenção foi a alteração do Art.67 do Código de Trânsito Brasileiro que simplesmente acaba com o limite de tempo de direção contínua dos caminhoneiros.
No texto final do Relator, o deputado Da Vitoria (PP-ES), sem apresentar as justificativas, estudos técnicos e origem da inclusão, ao menos que seja facilmente encontrada nos documentos da Câmara, incluiu no Art. 67-C , dois parágrafos que praticamente autorizam os caminhoneiros a dirigirem quantas horas quiserem sem parar. O que facilita a vida de quem explora esses profissionais e coloca em risco milhões de brasileiros todos os dias nas estradas.
Entenda a situação
Atualmente, a Lei 13.103/15, conhecida como Lei dos Caminhoneiros, prevê:
Art. 67-C. É vedado ao motorista profissional dirigir por mais de 5 (cinco) horas e meia ininterruptas veículos de transporte rodoviário coletivo de passageiros ou de transporte rodoviário de cargas. (Redação dada pela Lei nº 13.103, de 2015)
- 1º Serão observados 30 (trinta) minutos para descanso dentro de cada 6 (seis) horas na condução de veículo de transporte de carga, sendo facultado o seu fracionamento e o do tempo de direção desde que não ultrapassadas 5 (cinco) horas e meia contínuas no exercício da condução. (Incluído pela Lei nº 13.103, de 2015)
- 2º Em situações excepcionais de inobservância justificada do tempo de direção, devidamente registradas, o tempo de direção poderá ser elevado pelo período necessário para que o condutor, o veículo e a carga cheguem a um lugar que ofereça a segurança e o atendimento demandados, desde que não haja comprometimento da segurança rodoviária. (Incluído pela Lei nº 13.103, de 2015)
Essa tolerância de 5 horas e meia já é considerada um absurdo em termos de segurança viária. Acima de 4 horas de direção contínua, o motorista vai perdendo a condição de dirigir com segurança. Tanto que as empresas como Cosan, Vibra Energia (BR Distribuidora), White Martins e tantas outras estabelecem limites de 3 horas de direção contínua. Em casos excepcionais, algumas empresas toleram até 4 horas.
A Lei 12.619/12, batizada como “Lei do Descanso” pelos motoristas, que antecedeu à atual, previa descanso de 30 minutos a cada 4 horas de direção contínua. O lobby dos maus embarcadores (donos da carga) e transportadores, que exploram os caminhoneiros e controlam deputados, conseguiu aumentar para 5 horas e inclusive considerar que dois motoristas podem dirigir sem parar, revezando ao volante por 72 horas. Sendo considerado descanso dormir no veículo em movimento.
Conforme está previsto no Art. 235-D da referida Lei 13.103/15 no:
“§ 5º Nos casos em que o empregador adotar 2 (dois) motoristas trabalhando no mesmo veículo, o tempo de repouso poderá ser feito com o veículo em movimento, assegurado o repouso mínimo de 6 (seis) horas consecutivas fora do veículo em alojamento externo ou, se na cabine leito, com o veículo estacionado, a cada 72 (setenta e duas) horas.”
Com a nova redação da Medida Provisória do Governo foram criados os parágrafo 8 e 9, cujo objetivo é forçar os governos a indicar pontos de parada nas rodovias. Não é atribuição do governo ficar controlando onde os caminhoneiros param mas a Lei 13.103/15 estabelecia essa obrigação que tinha que ser cumprida até março de 2021, o que não aconteceu. Na prática foram indicados 41 pontos em 75 mil km de rodovias federais e nenhum nas estaduais.
“Essa foi uma jogada dos que exploram os caminhoneiros. Eles sabiam que os governos não tem condições, nem faz parte das suas atribuições, de cuidarem de áreas para pernoite dos caminhoneiros. Como não são capazes de indicar pontos, essa turma que torna os caminhoneiros escravos sobre rodas diz que eles podem dirigir quanto quiserem, porque não tem onde parar. A prova de que isso não é verdade é que a própria BR Distribuidora (atual Vibra), para citar apenas uma empresa antes ligada ao governo, consegue locais para parar com segurança em todo território nacional, respeitando as 3 horas de direção e não 5 horas e meia”, explica Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas e autor do estudo a ”Importância Social e Econômica dos Pontos de Parada.”
Veja os parágrafos criminosos que podem virar lei
Observe que ambos parágrafos jogam a responsabilidade nos governos de indicar pontos e garantir vagas para pernoite. Seria o equivalente ao governo ser obrigado a informar onde tem pousadas e hotéis disponíveis para quem viaja a trabalho trafegando pelas rodovias e ainda garantir hospedagem gratuita.
- 8º Constitui situação excepcional de inobservância justificada do tempo de direção e de descanso pelos motoristas profissionais condutores de veículos ou composições de transporte rodoviário de cargas, independentemente de registros ou de anotações, a indisponibilidade de pontos de parada e de descanso reconhecidos pelo órgão competente na rota programada para a viagem ou o exaurimento das vagas de estacionamento neles disponíveis.
- 9º O órgão competente da União ou, conforme o caso, a autoridade do ente da Federação com circunscrição sobre a via publicará e revisará, periodicamente, relação dos espaços destinados a pontos de parada e de descanso disponibilizados aos motoristas profissionais condutores de veículos ou composições de transporte rodoviário de cargas, especialmente entre os previstos no art. 10 da Lei nº 13.103, de 2 de março de 2015, indicando o número de vagas de estacionamento disponíveis em cada localidade.”
Como garantem a impunidade total
Para completar o serviço sujo, alteram o § 1º ao Art. 67-E.
O texto original da Lei 13.103/15 previa:
Art. 67-E. O motorista profissional é responsável por controlar e registrar o tempo de condução estipulado no art. 67-C, com vistas à sua estrita observância. (Incluído pela Lei nº 13.103, de 2015)
- 1º A não observância dos períodos de descanso estabelecidos no art. 67-C sujeitará o motorista profissional às penalidades daí decorrentes, previstas neste Código. (Incluído pela Lei nº 13.103, de 2015)
O parágrafo foi substituído, no texto do Relator, o deputado Da Vitoria, pelo seguinte:
- 1º-A Não estará sujeito às penalidades previstas neste Código o motorista profissional condutor de veículos ou composições de transporte rodoviário de cargas que não observar os períodos de direção e de descanso quando ocorrer a situação excepcional descrita no § 8º do art. 67-C deste Código.
O que mais uma vez garante a exploração desses profissionais por quem não respeita as condições dos trabalhadores e muito menos assume qualquer compromisso com a preservação da vida de quem está nas rodovias.
O vice-presidente da Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FENAPRF), Marcelo Azevedo, analisa a alteração do Código de Trânsito e reconhece que a fiscalização será praticamente inviável. “Realmente essa mudança na prática inviabiliza a fiscalização, pois condiciona a publicação dos pontos de parada que sabemos que não ocorrerá. Mudou-se para permitir a fiscalização e agora estamos retrocedendo“.
Entramos em contato com o gabinete do deputado Da Vitoria para saber como esses parágrafos surgiram? Quem introduziu essas alterações que vão causar tantas mortes na MP que não tinha absolutamente nada sobre o tema?
Até o fechamento desta matéria, nenhuma resposta foi enviada ou contato feito com nosso portal. O fato concreto é que essas modificações na legislação representam uma VITÓRIA de quem explora os caminhoneiros.
O que dizem os especialistas
O prof. dr. Marco Túlio de Mello, diretor-técnico do CEMSA – Centro Multidisciplinar em sonolência e Acidentes, um dos maiores especialistas em fadiga de motoristas profissionais analisa as mudanças.
“Não tem nada positivo. O objetivo da parada não é o motorista ir ao banheiro mas mudar o ambiente para que ele tire o foco do que estava fazendo, possa descansar e voltar a dirigir com segurança. Conduzir por mais de 3 ou 4 horas, é extremamente perigoso. Com a fadiga o motorista fica mais agressivo e menos cuidadoso quanto a velocidade. A pessoa passa a não ter mais consciência do que está fazendo. E não estamos falando apenas de tempo de direção, afinal, o motorista começa a trabalhar muito antes enquanto aguarda para carregar o caminhão. A partir da 9h de trabalho o risco aumenta, a partir da décima segunda hora o risco duplica e triplica a partir de 14 horas de trabalho. Além disso, a partir de 15 ou 16 horas acordado é como se a pessoa estivesse alcoolizada e dirigindo”, esclarece o especialista.
Mas ele vai além e diz que no caso do caminhoneiro, que precisa de 100% de atenção, e está dirigindo um veículo com dezenas de toneladas, “é um verdadeiro absurdo”. Ele observa ainda que nas profissões que colocam outras pessoas em risco não podemos ir ao extremo e deixar as coisas acontecerem. A situação piora ainda em jornadas noturnas ainda aumentam em 30% o risco de acidente, mesmo com o descanso previsto em lei. “Portanto, todas essas situações somadas fazem com que tudo esteja pronto para o acidente acontecer.”
O caminhoneiro José Antônio, que não quis revelar o sobrenome por medo de retaliação do patrão, acrescentou: “Depois, quando o caminhoneiro está rebitado e mata uma família, quem vai preso é o carreteiro. Nós somos os monstros, os drogados, e quem nos obriga a trabalhar, às vezes, 24 horas sem parar nunca aparece e ainda demite o caminhoneiro quando acontece o acidente.”
Cajau Antonelli, caminhoneiro que também trabalha como empregado, explica que na sua transportadora os motoristas não são pressionados quanto a horário mas lembra que em muitas empresas os motoristas que fazem mais viagens são considerados melhores, não importando para o patrão, se eles estão dirigindo muitas horas sem parar ou até viram a noite dirigindo. “Em muitas empresas eles são tratados como exemplo, pressionando os demais a andar mais. E na hora da demissão, quem respeita as leis acaba demitido por suposta baixa produtividade.”
Na hora que deu essa declaração, Cajau estava esperando praticamente há 48 h para descarregar e já tinha confusão no local porque os caminhoneiros autônomos e a transportadora tem direito de receber pela demora mas muitas empresas não pagam. “Quando o caminhoneiro está nessa situação, muitas vezes ele vai tentar recuperar o tempo perdido dirigindo o máximo de horas sem parar”, esclarece o experiente caminhoneiro.
Para o dr. Paulo Douglas Almeida de Moraes, do Ministério Público do Trabalho e profundo conhecedor da exploração dos profissionais da estrada, teremos mais mortes. “Na minha visão a fadiga é um fator de risco, principalmente para quem trabalha dirigindo. Nós temos um histórico de progressão da leniência legislativa quanto a fadiga do motorista profissional. Na Lei 12.619/12 não era permitido mais que 4 horas de direção contínua, foi para 5h30 com a Lei 13.103/15 e agora, com essa Medida Provisória, prestes a ser transformada em lei, nós temos a possibilidade de não ter limite. O que se espera dessa norma que desprotege o trabalhador é um aumento do número de acidentes e mortes, não só de caminhoneiros mas também dos demais usuários das rodovias.”
Como o governo apresentou essa MP, o Estradas.com.br entrou em contato com a Senatran, órgão responsável pelo Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans). Questionado sobre os malefícios dessa norma, a Senatran lavou as mãos e mandou entrar em contato com o Ministério da Economia.
Na manhã de sexta-feira (12)*, a reportagem tomou conhecimento da resposta do Ministério da Economia, que pediu para entrar em contato com a Senatran. O Estradas rebateu informando que havia sido a própria Senatran que solicitara contato com o Ministério da Economia. Nesse jogo de empurra, como ficam os usuários?
Para o coordenador do SOS Estradas, Rodolfo Rizzotto, caso essas mudanças no Código sejam sancionadas pelo presidente, teremos mais acidentes e mortes nas rodovias brasileiras, além de colocar ainda mais pressão nos caminhoneiros. “A própria PRF reconhece que 47% dos acidentes com mortes nas rodovias federais tem envolvimento de caminhões, independente da culpa. Com motoristas mais cansados, dirigindo veículos com dezenas de toneladas, a única coisa que temos certeza é que teremos mais mortes. É mais uma alteração legislativa criminosa. Esperamos que o presidente, que não tem contribuído para a redução da violência no trânsito, pelo menos dessa vez vete essas mudanças. Caso contrário, assumirá sua cota de responsabilidade nas mortes decorrentes.”
Estradas.com.br