Estagiários denunciam rotina de assédios em escritórios de advocacia de Campo Grande
Perfil anônimo no Instagram, de nome ‘escritoriosexpostosms’, foi criado para denunciar abusos e assédios praticados contra advogados e estagiários de Direito no Mato Grosso do Sul. O curioso é que a primeira postagem ocorreu nessa quinta-feira (18), justamente quando foi comemorado o Dia do Estagiário e inúmeros escritórios fizeram postagens presenteando e agradecendo a colaboração dos estudantes. Nas últimas 24 horas, no entanto, o perfil ganhou centenas de seguidores e comentários, confirmando, corroborando ou questionando os supostos casos.
Conforme o perfil, todos os relatos postados serão anônimos e com intenção de abusos serem apurados e não mais repetidos. Uma das pessoas usou o espaço para parabenizar a iniciativa e dizer que “grandes escritórios são uma máfia na cidade” e vários casos de assédio e abuso estariam ocorrendo, porém, “ninguém processa e nem faz nada”.
Nos relatos, órgãos como o MPT (Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul) e a OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso do Sul) estão sendo marcados.
Uma das pessoas comenta que atuou por 4 anos em um escritório e teve que sair por conta da “pressão moral que fazem”, sendo que, no local, ainda de acordo com o denunciante, estagiário faz serviço de advogado, departamento de RH (Recursos Humanos) “fica em cima” e, qualquer coisa, manda e-mail e dá advertência.
Além disso, a pessoa diz que a gestora do escritório fala em palestras motivacionais, mas, “não faz aquilo que prega”, comentando ainda que tal gestora é o “terror dos estagiários” e humilha em voz alta. O relato termina dizendo que a rotatividade no local é alta por conta destes fatos.
‘Ali os sonhos são destruídos’, denuncia ex-estagiária
Diante da postagem, várias pessoas – que não tiveram vergonha de se identificar – comentaram. Uma delas disse: “Trabalhei nesse escritório quase três meses e realmente é tudo verdade. A dita cuja da história é um ser humano desprezível, uma psicopata. Vi coisas de cortar o coração, ali sonhos são destruídos”.
Outra complementa: “Ler esses relatos despertou o sentimento ruim que tive quando trabalhei lá. Com duas semanas trabalhando vi como era e fui ficando extremamente mal. Primeiro, por ser tratada mal pela gestora e por uma supervisora que nem advogada era, não era nada, mas se achava, segundo pela pressão que fazem sem nem ensinar nada (aprende por vídeos desatualizados). Pedi as contas e o RH pediu pra eu terminar o mês, fiquei mais duas semanas e ia trabalhar chorando, foi horrível.. acredito que se eu tivesse ficado mais tempo poderia ter ficado doente, assim como muitos lá”, denunciou.
Bacharel diz que foi humilhada e viu 8 colegas pedirem demissão ao mesmo tempo
Uma bacharel em Direito, de 26 anos, que está desempregada no momento, fala que a experiência como estagiária, em um escritório de renome no Jardim dos Estados, em Campo Grande, foi “péssima”. Conforme a estudante, quando chegou no local, sonhou com a possibilidade de ter um grande escritório no currículo.
“Trabalhei na controladoria, que é o setor responsável por atender os prazos por meio dos protocolos e fazia cadastro de novas ações também. A gestora, que todos comentam nas publicações do Insta, é deste setor. Pois bem, ela humilhava todo mundo na frente de todos. Você tinha que tratar ela como ela queria senão ela te xingava”, contou ao Jornal Midiamax.
Certo vez, a estudante diz que presenciou uma ligação em que um funcionário não falou com ela, como queria, e a pessoa foi xingada de “filha da p***”. “Você não podia se comunicar ou pedir ajuda para outros colegas, somente pra ela ou então olhar os vídeos que ela mesmo grava. Na sala, tinha uma TV e, se você fizesse alguma coisa errada, ela passava nessa TV para todos da sala aprenderem com o seu erro. E sempre tinha alguém sendo exposto nessa TV. Eu passei por isso, errei e ela mostrou na sala toda. Vi os olhares de dó dos colegas, pois, ela estava me humilhando muito”, argumentou.
Quando foi pedir demissão, a jovem conta que não falou os motivos para, mais uma vez, ser humilhada. “O RH corria e falava pra ela e você virava comentário no escritório todo, como mais uma que não aguentou. Também presenciei ela dizendo que odiava trabalhar e contratar mulher porque tinha que lidar com vários temperamentos e mulher era muito sensível, mas, somente as mulheres tinham atenção aos detalhes que o cargo necessitava”, relembrou.
Além dela, ao mesmo tempo, outras oito pessoas teriam pedido demissão. “Lembro também que você não podia demorar muito no banheiro, não podia ter amizade. Tem uma história que todo mundo conta lá que uma menina foi pro banheiro chorar por causa dela. Aí ela juntou todas as coisas da menina e jogou na porta do banheiro, dizendo que ela estava demitida. A menina pediu as imagens, disseram que tudo estava desligado para não dar em nada. Das 8 pessoas que entraram comigo, todo mundo pediu demissão pelos mesmos motivos de assédio”, afirmou.
Sobre fazer boletim de ocorrência ou denunciar, de maneira formal, a bacharel fala que todo mundo tem medo. “É um escritório grande e todo mundo sabe que é difícil processar por assédio moral, pois, os tribunais não dão muita importância, além de ser difícil de provar. Acho que é por isso que ninguém nem faz nada”, lamentou.
Escritório citado em postagens diz que não compactua com assédio
Um dos escritórios citados em postagens emitiu nota. Veja na íntegra:
“O escritório Mascarenhas Barbosa Advogados reitera e reafirma à sociedade campograndense seu absoluto compromisso com os princípios éticos e morais que norteiam o exercício da advocacia, primando pelo elevado nível do ambiente organizacional e o saudável relacionamento entre todos os sócios, associados, gestores e colaboradores que, juntos, contribuem para o bom desenvolvimento da missão e dos valores da banca.
Dessa forma, o escritório não compactua com nenhum tipo de desvio de conduta que possa configurar assédio moral ou qualquer outro tipo de afronta aos princípios e valores que estabelece como fundamentais. E, assim, diante dos graves fatos divulgados em mídias sociais, informa e esclarece que já está adotando todas as providências cabíveis para o pleno esclarecimento das denúncias, inclusive com o afastamento de eventuais envolvidos para garantia da impessoalidade na apuração, de tudo fazendo e promovendo para a melhoria do ambiente organizacional e preservação dos valores e princípios que constituem a essência do escritório.”
MPT diz que tomou conhecimento das denúncias e vai apurar
Ao Jornal Midiamax o MPT-MS, conforme assessoria de imprensa, diz que “a notícia de fato foi autuada diante da publicação e que será distribuída a um dos membros do Ministério Público do Trabalho para este averiguar se há elementos para instauração de inquérito”.
Já o setor de comunicação da OAB-MS informou que, até o momento, não recebeu qualquer representação formal a respeito. Caso formalizada, ainda conforme o órgão, será apurado pelo Tribunal de Ética e Disciplina.
Casos podem causar grande desconforto no futuro, avalia psicóloga
A psicóloga especialista em comportamento humano, Thaís Marcela Jaymes Lemos, de 30 anos, fala que, infelizmente, esta é uma realidade não só na área do Direito, mas em outras também. “Acredito que estas situações de pressão, assédio moral e outras que os estagiários estão denunciando são reais. Infelizmente, já fui estagiária e passei por situações parecidas. Com isso, a pessoa pode causar um grande desconforto no futuro, em relação à profissional que esta pessoa vai se tornar. Ela pode desenvolver pânico, medo pela profissão, achando que todas as pessoas são desta forma, principalmente no Direito, em que as pessoas são autoritárias, então, são vários problemas que podem desencadear no futuro”, explicou.
Além disso, este profissional pode, no futuro, se tornar inseguro, com baixa autoestima, ansioso, pode ser um profissional com dificuldades para desenvolver o trabalho, além de até mesmo “descontar” ou fazer o mesmo com colegas de trabalho.
“Ele pode achar que nunca é suficiente, por ver a realidade da área dele. Por exemplo, muitos estudantes vão para a área pensando em fazer justiça e, vendo tais situações de assédio, vê que não é aquilo e aí desiste do curso. Ele acaba sofrendo pressão, humilhação, assédio e tudo perde o sentido para ele, então, pode gerar desânimo, descrédito, então, infelizmente temos muitas possibilidades do que pode causar nas pessoas”, ressaltou.
Postagens foram motivadas após estagiário se jogar de prédio em SP
Conforme os administradores do perfil, o movimento surgiu “de uma revolta, um grito entalado”. Uma semana antes da criação do perfil, no dia 11 de agosto, um estagiário do escritório Mattos Filho, em São Paulo, pulou do 7º andar do prédio da empresa.
Na ocasião, conforme funcionários, foi relatado que o ritmo de trabalho no local era de “muita pressão e cobrança”. Além disso, a denúncia aponta que o estudante teria perdido o prazo de um processo tributário e foi advertido publicamente antes de se jogar do prédio.
Por fim, a postagem fala que esta não é “uma realidade distante” e que “pessoas despreparadas têm causado traumas e transtornos irreparáveis”.