Enquanto a família come frango na varanda, uma ave caminha despreocupada pela grama. Parece utopia, mas é real. Graças à tecnologia, o mundo se aproxima de colocar no prato uma inédita carne livre de abate.
A cena é de um comercial da Eat Just, startup sediada na Califórnia (EUA) que produz carne cultivada – feita em laboratório a partir de células de animais vivos. A nova indústria já reúne mais de 50 empresas, de 19 países, um terço delas fundadas em 2019, e promete promover uma nova revolução no setor de alimentação.
“Nós domesticamos os animais há cerca de 10 mil anos e, agora, estamos no limiar do que deve ser uma segunda domesticação: a possibilidade de domesticar a célula”, diz Carla Molento, coordenadora do Laboratório de Bem-estar Animal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora de uma pioneira turma de zootecnia celular no Brasil.
Não é preciso abater animais para produzir a carne e a tecnologia reduz drasticamente o uso de terras, água e insumos. Além disso, há a mitigação do impacto ambiental, ao emitir menos gases de efeito estufa, tanto no campo quanto na logística, para levar o produto até as gôndolas e os consumidores.
Outro fator é que, para a carne cultivada, a qualidade da genética importa mais do que a quantidade do rebanho. E o mais impressionante: o uso de biorreatores permite transformar células em carne em apenas três semanas.
“Hoje, é preciso alimentar animais por anos para ter uma pequena porção de carne nobre. Com a cultivada, será possível criá-la em três semanas. É uma mudança disruptiva. Está nascendo uma indústria nova”, afirma Gustavo Guadagnini, diretor executivo do The Good Food Institute (GFI) Brasil.
Há sinais claros de que essa tecnologia está cada dia mais perto. Já há carne cultivada feita em laboratório à venda em um restaurante de Cingapura. Em dezembro, o país asiático se tornou o primeiro a regulamentar a produção e a venda do novo produto.
Em Israel, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu provou a carne no mês passado e gostou. “É deliciosa e livre de culpa, consigo sentir a diferença”, disse. “Os esforços do governo são combinados com um grande interesse do setor empresarial, com quase 100 startups e empresas de proteínas alternativas. Isso leva à criação de fundos de pesquisa e inovação, o que deve aumentar ainda mais nos próximos cinco anos”, destaca Alla Voldman, gerente de relações estratégicas do GFI Israel.
O investimento e o interesse são resultado de uma disputa industrial pela capacidade de produzir em escala e com preço competitivo para chegar aos supermercados. Há lançamentos previstos para 2021 e perspectiva de que, em cinco anos, fábricas já estejam funcionando e o produto possa chegar às prateleiras.
Mas, como em toda nova indústria, há desafios a vencer. Diferentemente dos alimentos plant-based, que já estão se popularizando, a carne cultivada está em uma fase mais técnica, de validação de tecnologia.
Uma das consequências disso é a incerteza em relação ao preço. Em 2013, quando o primeiro “hambúrguer de laboratório” surgiu, o investimento foi de quase US$ 300mil. No ano passado, a Eat Just disse ter gastado cerca de US$ 50 para produzir um nugget de frango. Até o fim de 2021, a projeção da holandesa Mosa Meat e da espanhola BioTech Foods é criar um hambúrguer que custe US$ 10.
“Com biorreatores, será possível produzir até no deserto. E, quando a tecnologia for dominada e houver um custo competitivo, a pecuária vai se transformar, pois poderemos fazer carne de qualquer animal. Até lá, devemos começar com produtos híbridos (vegetal + animal) ou baseados em gordura, como bacon”, aponta Guadagnini.
Outro desafio é produzir um bife ou pedaço de carne nobre com a mesma textura dos convencionais – ao contrário de um hambúrguer, por exemplo, cuja estrutura não é tão complexa. Hoje, a expectativa é que isso só ocorra a partir de 2030.
A energia é outro gargalo produtivo diante da demanda por biorreatores. “Também há dúvidas sobre quão distributiva será essa indústria. Se poucas detiverem conhecimento, haverá concentração de poder”, observa Carla Molento, da UFPR.
Fora do processo produtivo, há a decisiva aceitação do consumidor. Entre as preocupações, está o estereótipo de que a carne é artificial. “Mas o frango e a vaca leiteira que a gente vê hoje também não têm nada de naturais na genética e na forma como são criados. Há muita artificialidade na produção convencional”, aponta Carla.
O chefe-geral da Embrapa Gado de Corte, Antônio do Nascimento Ferreira Rosa, destaca que o consumidor é soberano, mas vê um mercado mais promissor para a carne cultivada em relação à proteína vegetal, diante da similaridade de suas características.
“Mas vai depender de vários aspectos, como preço e composição do produto. Além disso, essas novas indústrias são muito verticalizadas, não distribuem renda. Creio que o valor social da cadeia também vai ser importante”, destaca.
Guadagnini observa que o nome “carne de laboratório” só existe porque a tecnologia ainda está em desenvolvimento. “Mas não são produtos sintéticos, com moléculas feitas em laboratório. É a reprodução idêntica de tecidos de animais”, ressalta.
Assim como no mercado convencional, o agro é peça-chave na produção de carne cultivada. Até porque a perspectiva é que a tecnologia não substitua a pecuária, mas sim se consolide como uma opção a mais de proteína animal.
“Em 2015, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) projetava que o mundo iria demandar em torno de 480 milhões de toneladas a mais de proteína de origem animal até 2050. Tem mercado para todo mundo. É preciso olhar tudo isso como oportunidade”, analisa Cleber Soares, diretor de inovação do Ministério da Agricultura.
Segundo ele, a pasta pretende lançar ainda em 2021 um plano nacional de proteínas alternativas. O foco principal é o mercado plant-based, que se consolida no país, mas a carne cultivada também estará no programa, que deve incluir fomento para pesquisa e tecnologia (o valor ainda não está definido).
As diretrizes do plano brasileiro serão debatidas em um workshop no dia 19 de março, durante a Food Tech Expo. “A intenção é estimular o desenvolvimento de ativos, mercado e tecnologia. Não dá para imaginar que o Brasil vai ser só um grande exportador de commodities. Podemos agregar valor”, analisa Soares.
CEO do Food Tech Hub, ecossistema do setor agroalimentar que reúne startups e investidores, Paulo Silveira aponta três pontos cruciais para o plano: identificar as proteínas que o Brasil é capaz de produzir em escala; levar a tecnologia aos produtores; e construir um banco de dados sobre matérias-primas e sua utilização.
“O Brasil ainda está engatinhando. Mas dá para recuperar. A gente tem capacidade técnica de pesquisa, só precisamos de foco e investimento. Plant-based é uma revolução e carne cultivada é uma realidade, queiram ou não”, afirma Silveira.
Guadagnini, do GFI Brasil, pondera que o agro terá tempo suficiente para se adaptar e vê como primeiro passo uma maior conexão com o setor plant-based. “É possível criar vaca e, ao mesmo tempo, plantar aveia para produzir bebida vegetal. Isso também diversifica a renda do produtor e o protege contra sazonalidade e variação de preços.”
Outro fator de estímulo é o envolvimento de gigantes da carne na nova indústria. “É muito provável que elas entrem no setor de carne cultivada através de aquisições e investimentos. Esses namoros entre empresas e startups já estão acontecendo”, revela o diretor do GFI Brasil.
Mas, apesar do potencial imenso para ser protagonista na carne cultivada, por dispor de biodiversidade e expertise em nutrição celular e genética animal, o Brasil, ao menos por enquanto, está no fim da fila quando o assunto é pesquisa.
A Embrapa já tem estudos sobre plant-based, mas não conduz nenhum sobre carne cultivada. Enquanto isso, ações independentes começam a botar o Brasil no cenário mundial da produção. É o caso da Biomimetic Solutions, spin-off de uma startup que nasceu no Centro Federal de EducaçãoTecnológica (Cefet) de Minas Gerais.
Liderada por mulheres, a empresa começou focada em produzir nanofibra para o mercado de pele artificial, mas hoje desenvolve scaffold, espécie de andaime em que músculos e gordura são moldados para estruturar a carne cultivada em laboratório.
Após receber aporte de US$ 100 mil, a startup teve sua sede transferida para Londres (Inglaterra), por exigência dos investidores, mas mantém filial em Belo Horizonte (MG). Hoje, está em processo de captação de US$ 3 milhões, que serão investidos na criação de uma base própria de pesquisa, visto que hoje utiliza um laboratório compartilhado.
“Nosso objetivo é ter um laboratório no Brasil. Mas a forma como é feito o investimento em ciência no Brasil preocupa os investidores. Vários falaram que não se sentem seguros e que nosso país vive uma situação econômica instável”, conta Alana Santos Benz, fundadora e CEO da Biomimetic Solutions.
Para se credenciar para um novo aporte, a startup tem até meados deste ano para cumprir metas definidas com os investidores, como entregar três scaffolds para cultivo de carne de peixe, frango e boi.
“O mercado da carne cultivada vai acontecer, com o Brasil dentro ou não. Temos tanta biodiversidade, insumos naturais. Precisamos estar na traseira tecnológica? Já tem empresas patenteando o uso de nossas riquezas, e nem são brasileiras”, revela Alana.
Carla Molento, da UFPR, afirma que só o investimento em pesquisa dará chances ao Brasil de se tornar fornecedor dessa nova indústria. “É uma oportunidade imensa. Mas é preciso se engajar para não se tornar dependente de tecnologia de outros países, pois esse mercado vai crescer de qualquer jeito e corremos o risco de ficar de fora.”
Para Guadagnini, do GFI Brasil, financiar pesquisas e avançar em regulamentação são estratégias para estimular o setor no país. “É preciso investir em ciência, pois hoje faltam fontes de financiamento. Com R$ 5 milhões, já seria possível criar uma rede de universidades para colocar a pesquisa no Brasil de vento em popa”, finaliza.
*Fonte: Alana Fraga, Cleyton Vilarino e Leandro Becker, Globo Rural