Em meio ao desastre do Rio Taquari, ‘nasce’ o Payaguás do Xarayés

Falar no desastre do Rio Taquari é tocar um assunto que muitos dizem conhecer. Afinal, já são quase 40 anos de notícias sobre como o assoreamento fez trechos do curso d’água, um dos mais piscosos de Mato Grosso do Sul, simplesmente desaparecer. O fenômeno, porém, é mais dinâmico e bem menos simplista, e conta com aspectos nem sempre devidamente abordados: entre eles, o fato de ocorrer ali um processo geológico que pode, sim, ter sido acelerado pelo homem; e a luta da natureza para “dar seu jeito”, sobreviver e se readaptar, alterando 1,3 milhão de hectares do ecossistema e quase criando um “novo bioma” (termo visto com cautela por especialistas).

Estudiosos sobre o Pantanal veem os fenômenos surgirem no Taquari à medida que avançam rumo ao oeste, em direção ao Rio Paraguai. Areia arrastada do outro extremo, o planalto, em um raio de centenas de quilômetros que abraça municípios como Alcinópolis, Camapuã, Chapadão do Sul e Alto Taquari (MT), entre muitos outros, deu novos contornos ao rio, fez a calha sumir junto com a água, que se não em filetes, foi empoçada, se espalhou ou, como em 20 de setembro deste ano, simplesmente desapareceu.

Banco de areia no Taquari, resultado do depósito de sedimentos. (Foto: Instituo Agwa/Reprodução)
Banco de areia no Taquari, resultado do depósito de sedimentos. (Foto: Instituo Agwa/Reprodução)
As imagens, repassadas ao Campo Grande News pelo Instituto Agwa, impressionam. Locais onde antes havia portos fluviais há décadas e que, poucos meses atrás, era possível atravessar com a água no joelho, neste ano viraram estradas de terras ou quintais onde famílias secavam a roupa nas cercas. Apenas a vegetação sobrevivente no entorno e algumas construções dão a entender que, ali, passou um rio.

Só que o choque vem com outra constatação: o Taquari não “morreu”. Na verdade, quem usar este termo para definir o que ocorreu com o rio, terá de dizer também que ele “ressuscitou”. E mais de uma vez. Estudos conduzidos por pesquisadores da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) apontam que, em milhões de anos, o rio mudou seu curso várias vezes –braços, córregos e outros leitos secos ali existentes “foram o Taquari” no passado.

Porto Santo Antônio, em 20 de outubro, com rio totalmente seco. (Foto: Instituto Agwa/Reprodução)
Porto Santo Antônio, em 20 de outubro, com rio totalmente seco. (Foto: Instituto Agwa/Reprodução)

Alagado – Se o rio secou de um lado, do outro fez surgir o que passou a ser chamado de “Payaguás do Xarayés”: um delta alagado de 1,3 milhão de hectares transparentes, com vegetação e fauna que se modificaram –com a substituição de espécies dominantes por outras mais adaptadas à nova condição do solo– e criaram paisagens que se assemelham a atrativos como Bonito. E que agora uma corrente de produtores, ambientalistas e pesquisadores defende analisar sob a ótica do aproveitamento econômico. Sai a pecuária, sinônimo de riqueza e das grandes fazendas no passado, para que atividades como o turismo sustentável.

Área escura no mapa mostra delta onde água do Taquari se espalhou. (Imagem: Instituto Agwa/Reprodução)
Área escura no mapa mostra delta onde água do Taquari se espalhou. (Imagem: Instituto Agwa/Reprodução)
“O ‘desastre’ vem por conta de que quem cunhou esse termo foram os prejudicados. Para a pessoa que teve sua fazenda inundada e perdeu sua produção, e para algumas regiões na qual a mata de árvores grandes secou completamente, o que houve foi um desastre”, afirmou o pesquisador Carlos Padovani, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Pantanal, mestre em Biologia e doutor em Ecologia aplicada e um dos principais estudiosos sobre as mudanças sofridas pela região do Rio Taquari.

“É preciso ter um pouco de empatia para perceber as consequências na vida das pessoas. Foi drástico: envolveu pecuaristas, ribeirinhos, moradores da região, que tem assentamentos antigos”, prosseguiu o estudioso, ao lembrar que, hoje, muitas dessas comunidades dependem de auxílio do poder público para viverem –fora os que foram obrigados a abandonar a região e se mudar para a periferia de Corumbá.

Arrombado Caronal no encontro com o Taquari; área onde rio muda de direção. (Foto: Instituto Agwa/Reprodução)
Arrombado Caronal no encontro com o Taquari; área onde rio muda de direção. (Foto: Instituto Agwa/Reprodução)

Interpretações – A área do Payaguás do Xarayés é tomada por braços de pequenos rios que desembocam em um gigantesco lago, deixando a vegetação submersa. “Ali, uma nova vida está nascendo, um novo e desconhecido bioma que precisa ser estudado para se saber se aquela tragédia que expulsou famílias, inundou fazendas e causou a morte de um rio importante de Mato Grosso do Sul acabou dando lugar a um inédito, maravilhoso e inexplorado ambiente”, destacou o Instituto Agwa, em nota.

A interpretação sobre o novo “bioma” não é consenso entre especialistas. Padovani, por exemplo, considera que o Payaguás do Xarayés possa ser visto “talvez como uma nova região do Pantanal, que já foi descrita por mim e outros colegas, como parte do espalhamento do Taquari”, contestando o conceito. Já o coordenador do curso de Engenharia Ambiental Flávio Veríssimo, da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) enxerga ali transformações “na quais tem vida pulsando ali, com peixes e vegetação que se adequaram a essa nova inundação”.

A exploração econômica, segundo o Agwa, esbarra em proibições judiciais por provocação do Ministério Público, contrário ao desenvolvimento de ações na região, seja turística ou de estudos e pesquisas. “Enquanto isso não se flexibiliza, o Rio Taquari morre ainda mais e a ‘novidade’ que surgiu dessa tragédia se esconde”, sustenta a instituição.

Proprietário de terras na “entrada” do Caronal, o produtor rural Orlei Saravi Trindade lembra que, a princípio, toda a região foi contra o fechamento dos arrombados. “Todo mundo fala do desastre do rio, mas ele também destruiu o Pantanal do Paiaguás, criou um delta com milhares de hectares que ficaram embaixo d’água. O que morreu de animais e o Estado deixou de produzir, ninguém ficou sabendo”, lamentou, ao comparar a situação com a tragédia de Brumadinho (MG), “mas como aqui é pouco povoado, ninguém divulgou”.

Trindade afirma que, economicamente, a região parou. Um exemplo é a pesca, que se tornou impraticável na região de águas rasas. Ele reforça que ações como as anunciadas nos últimos anos, que previam a destinação de milhões de reais para revitalizar o rio, ficaram nas promessas. “Há 40 anos se discute a mesma coisa e há 40 anos não se faz nada. De um lado virou um deserto, um Saara onde os animais estão morrendo de sede e as pessoas furam cacimbas para tomar água enferrujada, podre. E de outro é um Pantanal que não serve de nada”, reclamou o produtor, que arremata. “Não existe conservacionismo sem economia, porque as pessoas acabam com tudo. Precisa levar algum sustento para lá”.

Entidade e produtores defendem exploração comercial da região. (Foto: Instituto Agwa/Reprodução)
Entidade e produtores defendem exploração comercial da região. (Foto: Instituto Agwa/Reprodução)

 

 

*Campo Grande News – Humberto Marques